Estudos
têm dificuldades para apontar origem das brincadeiras,
que integram a cultura popular do mesmo modo que a literatura
oral, a música e a culinária
Você sabe quem foi que
inventou a maria-cadeira?
em que duas crianças trançam os braços para formar uma cadeira humana,
usada para lançar um dos companheiros, após o canto de um versinho:
“Onde vai, Maria Cadeira?/ Vai à casa do capitão,/ O capitão não está
em casa,/ Joga Maria Cadeira no chão/ joga Maria Cadeira no chão...”.
De onde vêm as brincadeiras? Ninguém responde com certeza. Elas são universais e fazem parte da cultura popular _como a literatura oral, a música, a culinária.
A brincadeira pode ser considerada uma linguagem. Sigmund Freud (1856-1939) analisou o comportamento de um menino de 18 meses, que se divertia com uma linha presa no carretel. A criança atirava o carretel para longe e perto do berço _e dizia “vor” (perto) e “da” (longe). Para o psicanalista, o jogo seria a vivência simbólica da presença e afastamento da mãe. Melanie Klein (1882-1960) e outros psicanalistas e psicólogos trabalharam com a ludoterapia e atribuíram aos jogos e brincadeiras a função de elaborar sentimentos e vivências. Eles divertem as crianças e as preparam para a realidade.
Homero fala de jogos infantis na “Odisséia”. Em túmulos de crianças do século 4 a.C., na Grécia, foram encontradas bonecas. Mas é impossível dar a palavra final sobre a origem de uma brincadeira, pois ela ganha variantes e se transforma no tempo e no espaço. As primeiras famílias européias que chegaram ao Brasil durante a colonização trouxeram a boneca, o pião e o soldadinho. E também monstros e gigantes, ogros e “trolls”, sereias e duendes, junto com canções de ninar e contos de fada.
Os africanos também contribuíram com criaturas que assustavam as crianças, como o tutu-marambá, o quibungo e o nironga.
Há referências de que as danças de umbigada têm origem africana. Em 1928, Simões Lopes Neto escreveu que certas danças teriam características indígenas e traços portugueses, como o sapateado.
“(...) Parecem haver resultado de uma combinação das danças dos primitivos paulistas, mineiros e lagunenses, com as danças dos açoristas e dos indígenas, mais a meia-canha e o pericon, danças que se usava nas repúblicas do Prata, especialmente em Corrientes, Entre-Rios e Estado Oriental.”
As danças tinham nomes indígenas como anu e tatu, além de chimarrita, chico, galinha-morta, e eram dançadas em bailes chamados fandangos que, a partir de 1840, foram sendo substituídos pelas danças vindas da Europa. Eram divertimentos tanto das classes altas quanto das senzalas.
Muitas dessas danças passaram para as rodas infantis. É o caso da dança que acompanha a canção que diz “Folga, folga, minha gente,/ que uma noite não é nada;/ se não dormires agora,/ dormirás de madrugada!”.
Tudo isso foi sendo misturado ao Brasil que já existia antes de ser descoberto. No imaginário dos índios, antes de eles sofrerem influência das missões catequéticas, heróis reinavam sobre a terra. Além de Macunaíma e Maíra, mitos mais difundidos, Nunes Pereira registrou, em 1940, o mito de Bahira, o herói bem-humorado que roubou o fogo guardado no céu pelos urubus.
Informam Orlando e Claudio Villas Boas que as crianças indígenas brincam durante todo o dia, especialmente com seus arquinhos e flechinhas. Têm, como se vê hoje entre as crianças do país, brincadeiras de disputa.
Um exemplo da miscigenação cultural e da dificuldade de datar e estabelecer origens pode ser observado nas interpretações sobre o conto jocoso “A Festa no Céu”.
Na Grécia, um aforismo dizia que animal rasteiro não pode querer voar. Isso leva a crer que a história do sapo que foi a uma festa no céu escondido na viola do urubu já tinha uma versão grega.
A história foi registrada entre os índios brasileiros, que provavelmente a conheceram por transmissão dos europeus, e em povos africanos. Uma fábula africana de Angola que diz que a tartaruga (que é sapo ou rã em variantes brasileiras e corresponde, nessa história, à astuta raposa na Europa) é condenada à morte e suplica que não lhe matem pela água, mas pelo fogo. Os inimigos resolvem afogar a tartaruga, e ela se salva.
A história também pode ter vindo do Oriente. O tema aparece no “Panchatranta” (livro da mitologia indiana), que se vulgarizou na Espanha sob a influência árabe. La Fontaine pode ter se baseado nessa obra para criar fábulas.
Para o estudioso Sílvio Romero, a cultura brasileira toma forma a partir do século 17: “No século 16, pois, por uma lei de evolução que dá em resultado antecederem as formas simples às mais compostas, as canções e cantos populares das três raças ainda corriam desagregados, diferenciados. Nos séculos seguintes, sobretudo no 17 e 18, é que se foram cruzando e aglutinando para integrar-se à parte, produzindo o corpo de tradições do povo brasileiro”.
João Ribeiro escreveu no livro “O Folk-Lore” (1919) que as brincadeiras infantis “são mensagens e recados de raça a raça, de povo a povo, de século a século, sem sair da perene onda infantil que os leva a ignorados destinos”.
O estudo das variantes linguísticas das brincadeiras ajuda a estabelecer elos históricos.
Ribeiro faz um estudo da expansão da brincadeira joão-do-cabo. Ele conta que, em 1919, o jogo vintém-queimado existia em Portugal e possessões, com vários nomes. Na Espanha, o nome era joão-das-cadeinhas. Alberto de Faria recolheu em Campinas (SP) a seguinte variante:
_ Vintém queimado!
_ Quem queimou?
_ Pilão do Carmo (Vilão do Cabo).
_ Quer que se prenda?
_ Prendido vá.”
Após o diálogo, vem outra série de versos, que autorizam a passagem de quem está na brincadeira:
_ Passa, passa cavaleiro, pela porta do carneiro!
_ Tem uma corda p’ra me emprestar?
_ Tenho; mas está suja.
_ De quê?
_ De cuspe de galinha!
_ Vamos experimentar...
_ Vamos!”
Depois dessas perguntas e respostas, feitas por dois meninos que estão nos extremos de uma cadeia de crianças de mãos dadas, todos passam sob os braços em arco dos meninos de uma ponta (a porta do carneiro) à outra; em seguida, os meninos dão um puxão para arrebentar a cadeia (a corda). Todo mundo cai.
Então, os dois meninos iniciais marcam no chão o inferno, o purgatório e o céu.
Um fica com a mão direita erguida e espalmada, para que os outros batam nela com as cabeças, enquanto pulam. Quem consegue fazer isso vai para o céu. Os perdedores vão para o purgatório ou inferno. As crianças gritam para quem foi para o inferno:
_ Coisa ruim, tem-tem
_ Pra ganhar vintém!
Ribeiro interpreta que o nome vilão-do-cabo teria vindo do tratamento dado a um dos meninos dos extremos da cadeia (na Espanha, frei João das Cadeinhas). Por sua vez, o nome vintém-queimado seria corruptela de “veinte y un quemados”, da parlenda castelhana da tradição quinhentista.
No Nordeste
do Brasil, a variante desse jogo é bolotinha-de-cabra e foi recolhida
por Julio C. Monteiro. No Ceará, essa brincadeira é conhecida também
por bolão-de-cabra, que tem semelhança sonora com “vilão”. No Sul
do Brasil, chama-se pilão-do-carmo. Na Bahia, é vilão-do-cabo mesmo.
Se vilão resultou em bolão, por que o nome bolotinha? João Ribeiro explica. Como o jogo na península era também conhecido como juan-de-las-cadenetas (“cadeneta” é cadeia de “lavor e trancelim”), “em Portugal o povo, por zombaria, transformou a expressão em jam-da-caganeta desde o século 18”. Caganeta (ou caganita) designa o excremento da cabra. E aí está a razão “que faz predominar no extremo norte o título de bolão e bolotinha-de-cabra para um jogo que primitivamente se havia de chamar vilão-do-cabo ou jam-da-caganeta”.
E como vilão-do-cabo virou pilão-do-carmo? É possível que vilão tenha sido substituído por peão, que acabou por se transformar em pilão.
A análise dos aspectos linguísticos demonstram o percurso que o jogo fez por Portugal, Espanha e Brasil. A interpretação de uma versão italiana (“tila-tila”) ajuda a descobrir por que um barulho, simulando um tambor, foi incluído na versão brasileira.
A mudança pode ter apenas relação verbal. Explica João Ribeiro: “Quase todas as criações tradicionais devem suas formas a verdadeiros equívocos e trocadilhos das palavras. Só a essência escapa a essas erosões e metamorfoses da linguagem”.
O curioso na parlenda vilão-do-cabo, que deu na boca-de-forno, é que ela repete o tema da comida, que sempre aparece nas brincadeiras infantis: o bolo, o pão e o forneiro. A palavra final sobre essas interpretações, no entanto, ninguém a terá. O resultado desses questionamentos é tão aberto como o do estudo da poesia.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fol/brasil500/brinca8.htm
Você sabe quem foi que
inventou a maria-cadeira?
Fotos
Reprodução
|
A pintura "Jogos Infantis", do flamengo Pieter Brueghel, de 1560, que mostra 84 atividades lúdicas |
MÔNICA
RODRIGUES DA COSTA Editora da Folhinha No quadro “Jogos Infantis”, o flamengo Pieter Brueghel (1525?-1569) mostra cerca |
||
Levando-minha- dama-para- Londres ou maria-cadeira na Bahia |
de
250 personagens parti-
cipando
de 84 brincadeiras, em 1560. Grande parte de- las é conhecida ainda hoje. É o caso da maria-cadeira, |
Brincadeira da galinha-cega, semelhante à cabra-cega |
De onde vêm as brincadeiras? Ninguém responde com certeza. Elas são universais e fazem parte da cultura popular _como a literatura oral, a música, a culinária.
A brincadeira pode ser considerada uma linguagem. Sigmund Freud (1856-1939) analisou o comportamento de um menino de 18 meses, que se divertia com uma linha presa no carretel. A criança atirava o carretel para longe e perto do berço _e dizia “vor” (perto) e “da” (longe). Para o psicanalista, o jogo seria a vivência simbólica da presença e afastamento da mãe. Melanie Klein (1882-1960) e outros psicanalistas e psicólogos trabalharam com a ludoterapia e atribuíram aos jogos e brincadeiras a função de elaborar sentimentos e vivências. Eles divertem as crianças e as preparam para a realidade.
Homero fala de jogos infantis na “Odisséia”. Em túmulos de crianças do século 4 a.C., na Grécia, foram encontradas bonecas. Mas é impossível dar a palavra final sobre a origem de uma brincadeira, pois ela ganha variantes e se transforma no tempo e no espaço. As primeiras famílias européias que chegaram ao Brasil durante a colonização trouxeram a boneca, o pião e o soldadinho. E também monstros e gigantes, ogros e “trolls”, sereias e duendes, junto com canções de ninar e contos de fada.
Os africanos também contribuíram com criaturas que assustavam as crianças, como o tutu-marambá, o quibungo e o nironga.
Há referências de que as danças de umbigada têm origem africana. Em 1928, Simões Lopes Neto escreveu que certas danças teriam características indígenas e traços portugueses, como o sapateado.
“(...) Parecem haver resultado de uma combinação das danças dos primitivos paulistas, mineiros e lagunenses, com as danças dos açoristas e dos indígenas, mais a meia-canha e o pericon, danças que se usava nas repúblicas do Prata, especialmente em Corrientes, Entre-Rios e Estado Oriental.”
As danças tinham nomes indígenas como anu e tatu, além de chimarrita, chico, galinha-morta, e eram dançadas em bailes chamados fandangos que, a partir de 1840, foram sendo substituídos pelas danças vindas da Europa. Eram divertimentos tanto das classes altas quanto das senzalas.
Muitas dessas danças passaram para as rodas infantis. É o caso da dança que acompanha a canção que diz “Folga, folga, minha gente,/ que uma noite não é nada;/ se não dormires agora,/ dormirás de madrugada!”.
Tudo isso foi sendo misturado ao Brasil que já existia antes de ser descoberto. No imaginário dos índios, antes de eles sofrerem influência das missões catequéticas, heróis reinavam sobre a terra. Além de Macunaíma e Maíra, mitos mais difundidos, Nunes Pereira registrou, em 1940, o mito de Bahira, o herói bem-humorado que roubou o fogo guardado no céu pelos urubus.
Informam Orlando e Claudio Villas Boas que as crianças indígenas brincam durante todo o dia, especialmente com seus arquinhos e flechinhas. Têm, como se vê hoje entre as crianças do país, brincadeiras de disputa.
Com os curumins, as crianças africanas e européias aprenderam a brincar de imitar animais. Essa fusão cultural tem um paralelo no que acontece na mitologia. Em 1905, Max Schmidt apontou para o | ||
Jogo de guerra, que pode ser variante da brincadeira vilão-do-cabo | risco de se considerar originais algumas correspondências míticas, como a assimilação de Tupã como Deus, explicada por Camara Cascudo. |
Um exemplo da miscigenação cultural e da dificuldade de datar e estabelecer origens pode ser observado nas interpretações sobre o conto jocoso “A Festa no Céu”.
Na Grécia, um aforismo dizia que animal rasteiro não pode querer voar. Isso leva a crer que a história do sapo que foi a uma festa no céu escondido na viola do urubu já tinha uma versão grega.
A história foi registrada entre os índios brasileiros, que provavelmente a conheceram por transmissão dos europeus, e em povos africanos. Uma fábula africana de Angola que diz que a tartaruga (que é sapo ou rã em variantes brasileiras e corresponde, nessa história, à astuta raposa na Europa) é condenada à morte e suplica que não lhe matem pela água, mas pelo fogo. Os inimigos resolvem afogar a tartaruga, e ela se salva.
A história também pode ter vindo do Oriente. O tema aparece no “Panchatranta” (livro da mitologia indiana), que se vulgarizou na Espanha sob a influência árabe. La Fontaine pode ter se baseado nessa obra para criar fábulas.
Para o estudioso Sílvio Romero, a cultura brasileira toma forma a partir do século 17: “No século 16, pois, por uma lei de evolução que dá em resultado antecederem as formas simples às mais compostas, as canções e cantos populares das três raças ainda corriam desagregados, diferenciados. Nos séculos seguintes, sobretudo no 17 e 18, é que se foram cruzando e aglutinando para integrar-se à parte, produzindo o corpo de tradições do povo brasileiro”.
João Ribeiro escreveu no livro “O Folk-Lore” (1919) que as brincadeiras infantis “são mensagens e recados de raça a raça, de povo a povo, de século a século, sem sair da perene onda infantil que os leva a ignorados destinos”.
O estudo das variantes linguísticas das brincadeiras ajuda a estabelecer elos históricos.
Ribeiro faz um estudo da expansão da brincadeira joão-do-cabo. Ele conta que, em 1919, o jogo vintém-queimado existia em Portugal e possessões, com vários nomes. Na Espanha, o nome era joão-das-cadeinhas. Alberto de Faria recolheu em Campinas (SP) a seguinte variante:
_ Vintém queimado!
_ Quem queimou?
_ Pilão do Carmo (Vilão do Cabo).
_ Quer que se prenda?
_ Prendido vá.”
Após o diálogo, vem outra série de versos, que autorizam a passagem de quem está na brincadeira:
_ Passa, passa cavaleiro, pela porta do carneiro!
_ Tem uma corda p’ra me emprestar?
_ Tenho; mas está suja.
_ De quê?
_ De cuspe de galinha!
_ Vamos experimentar...
_ Vamos!”
Depois dessas perguntas e respostas, feitas por dois meninos que estão nos extremos de uma cadeia de crianças de mãos dadas, todos passam sob os braços em arco dos meninos de uma ponta (a porta do carneiro) à outra; em seguida, os meninos dão um puxão para arrebentar a cadeia (a corda). Todo mundo cai.
Então, os dois meninos iniciais marcam no chão o inferno, o purgatório e o céu.
Um fica com a mão direita erguida e espalmada, para que os outros batam nela com as cabeças, enquanto pulam. Quem consegue fazer isso vai para o céu. Os perdedores vão para o purgatório ou inferno. As crianças gritam para quem foi para o inferno:
_ Coisa ruim, tem-tem
_ Pra ganhar vintém!
Ribeiro interpreta que o nome vilão-do-cabo teria vindo do tratamento dado a um dos meninos dos extremos da cadeia (na Espanha, frei João das Cadeinhas). Por sua vez, o nome vintém-queimado seria corruptela de “veinte y un quemados”, da parlenda castelhana da tradição quinhentista.
O-chefe-mandou, variante provável de boca-de-forno |
Se vilão resultou em bolão, por que o nome bolotinha? João Ribeiro explica. Como o jogo na península era também conhecido como juan-de-las-cadenetas (“cadeneta” é cadeia de “lavor e trancelim”), “em Portugal o povo, por zombaria, transformou a expressão em jam-da-caganeta desde o século 18”. Caganeta (ou caganita) designa o excremento da cabra. E aí está a razão “que faz predominar no extremo norte o título de bolão e bolotinha-de-cabra para um jogo que primitivamente se havia de chamar vilão-do-cabo ou jam-da-caganeta”.
E como vilão-do-cabo virou pilão-do-carmo? É possível que vilão tenha sido substituído por peão, que acabou por se transformar em pilão.
A análise dos aspectos linguísticos demonstram o percurso que o jogo fez por Portugal, Espanha e Brasil. A interpretação de uma versão italiana (“tila-tila”) ajuda a descobrir por que um barulho, simulando um tambor, foi incluído na versão brasileira.
A mudança pode ter apenas relação verbal. Explica João Ribeiro: “Quase todas as criações tradicionais devem suas formas a verdadeiros equívocos e trocadilhos das palavras. Só a essência escapa a essas erosões e metamorfoses da linguagem”.
O curioso na parlenda vilão-do-cabo, que deu na boca-de-forno, é que ela repete o tema da comida, que sempre aparece nas brincadeiras infantis: o bolo, o pão e o forneiro. A palavra final sobre essas interpretações, no entanto, ninguém a terá. O resultado desses questionamentos é tão aberto como o do estudo da poesia.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fol/brasil500/brinca8.htm
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigada pela sua visita em meu Blog! Deixe um comentário!