VI UM INDIOZINHO ESCORRENDO
PELO BUEIRO
Vi um indiozinho escorrendo pelo bueiro. A metade de
seu corpo superior debruçava-se sobre o meio-fio da rua e a outra parte
inferior jazia cansada, escorrente pelo esgoto urbano. Imediatamente,
lembrei-me do quadro de Salvador Dali, retratando um relógio de pulso
desconstruído em sua forma original, mas reconstruído de forma que o relógio
obedecesse às formas roliças do punho humano. Me vieram à cabeça diversas
imagens derretidas deste pintor surrealista, desconstruidor da formalidade e
convencionalidade sociais, políticas e humanas. Mas o indiozinho estava lá se
derretendo e eu tive vontade de me derreter junto a ele pelo ralo planetar, mas
não pude. Seria covardia de minha parte!
O menino de 10 anos,_ um indiozinho urbano, desse
tipo que a intolerância e o paternalismo sociais ignoram e invisibilizam,_
compunha o triste quadro da miséria
humana. E se sua mãe pestanejar pelos direitos humanos,
como alimentar-se pelo menos, o paternalismo analisará: “quem mandou sair de
sua aldeia, quem são seus pais, seus avós, nós não lembramos dessas
histórias?!! De vítima do processo social e racial passa a oportunista. Essa
índia não pôde ficar na sua aldeia e esperar o “Paralelo 11”, versão 2004, ela
fugiu antes!
O último censo do IBGE registrou um aumento da população indígena,
considerando os indígenas desaldeados e indiodescendente. Isso é um primeiro
passo. Mas, enquanto isso o indiozinho
continuava lá, sucumbindo às lágrimas. Seu corpo magro e sujo amoldava-se às
formas do paralelepípedo. Sua cabeça reclinava sobre o chão imundo e seu pés
mostravam os ossos aos “abutres”. Eu nunca vira uma cena como essa. Nessa noite
eu não dormira. Nem na Índia eu vira cena tão agressiva à minha ética. Lá,
choquei-me ao ver os Dalits (os intocáveis), que sobreviviam raquíticos,
famintos, desconsiderados em estações de trem desativadas. Os Dalists eram mais
felizes do que aquele indiozinho, sabe lá Deus, de que aldeia veio! E sua mãe ?
Onde estaria? Onde estariam suas lendas, sua história de origem de vida? Onde
estariam suas tradições, seus costumes e sua espiritualidade? Sua
ancestralidade naquele momento descomprazia-se de sua sina. Os ossos daquela
família, das mulheres daquele clã, jaziam fétidos no fundo do mar à espera da
luz da foca ancestral ou jaziam à beira-rio esperando um milagre do pitiguary
ancestral. Toda essa cena contrastava-se com a propaganda da arte indígena que
nesse momento fazia sucesso em uma exposição citadina que corre o Brasil: “arte
milenar indígena não morre!”... Mas morrem as pessoas indígenas pela falta de
uma posição governamental que faça exercer os direitos indígenas nesse país. O
indígena precisa sair das paredes, dos museus, das salas de exposição!
O Fórum Permanente para Povos Indígenas, para quem
não sabe, foi criado a duras penas pela pressão do movimento indígena
internacional. Isso há mais de vinte anos! A Assembléia das Primeiras Nações, o
CISA ( Conselho Indígena de sudamérica) entre outras organizações indígenas
foram os precursores pela implantação de uma política indígena
autodeterminante, isto é, onde os próprios indígenas possam ser representados
por eles mesmos. O governo pode considerar os povos indígenas brasileiros
despreparados, divididos, infelizes, assessorados ora por um, ora por outros, o
que queira. O indígena brasileiro deve sentar na cadeira destinada a ele dentro
do Fórum Permanente para Povos Indígenas da ONU. Aquele espaço político foi
construído por ele e para ele, não foi uma concessão da ONU. Rigoberta Menchu,
Prêmio Nobel da Paz como um exemplo clássico, assim como milhares de indígenas
invisíveis derramaram seu sangue e lágrimas por aquele Fórum. Que imagem
continuamos construindo para nossos irmãos indígenas internacionais! Que imagem
estamos construindo para nós, Povos Indígenas! A indígena Dona Marta, índia
desaldeada, que queria ser deputada do PT, morreu em vão? Não construiu esse
direito, não conseguiu, porque ninguém vota em candidatos indígenas. Mas lançou
uma semente. Aproximam-se as eleições e esse quadro precisa mudar. Não há uma
cadeira provisória no Congresso, a Constituição, o departamento jurídico A ou B
não deixam. O Estatuto do Índio não deixa. Por acaso a Constituição deixa
morrer à mingua os direitos indígenas ??? Claro que deixa, isso pode...e nós
por pensarmos assim somos imediatistas, anti-profissionais, irresponsáveis, não
sabemos esperar “o momento certo”, enfim... o “tempo histórico e político”.
Quanto tempo temos que esperar?
O que deve ser feito é que esses homens de terno
preto e cinza, com gravatas coloridas, que trabalham no Congresso Nacional,
enfim.... desconsiderando Leis, Estatutos, Constituição devem reconhecer, não
na lei, como li na matéria do Jornal do Serviço de Informação Indígena (
Servindi/ Jornal dos próprios indígenas) sobre o representante brasileiro na
última reunião do Projeto de Declaração sobre os Direitos
indígenas/Genebra/2003, que os direitos dos indígenas brasileiros “já estão assegurados”, no
Brasil. Eu interpretei isso, apenas na teoria! No Brasil, nunca se diz o que já
foi feito concretamente, se anuncia o que se vai fazer, é aí que as coisas se
perdem.
O indígena brasileiro não pode ser mais idolatrado
na sua cultura e arte , nas suas fotografias, na suas artes cinematográficas,
nas suas expressões literárias e orais
ser literalmente ignorado na sua condição física, humana, social e
política.
Enquanto isso
o indiozinho, cor da terra, que se esvaía no chão, moreno, faceiro,
cabelos lisinhos, olhinhos de tigre_ roupas de mendigo_ continuava lá, na
indignidade que lhe foi imposta pelos que dizem que temos uma Constituição e
Leis e que não podemos desconsiderá-las. E eu , vendo aquele serzinho humano
escorrendo pelo meio-fio, perguntei a ele: “ O que aconteceu”? Ele com uma mão
esticada tentando catar os centavinhos caídos e outra mãozinha apertando uma
nota fétida de um real, me respondeu: “ os meninos-de-rua roubaram o meu dinheiro e me bateram. Ele não
se considerava um menino-de-rua! Vejam só! Quem será menino-de-rua, meu Deus?
Negros, favelados, delinqüentes, marginais, ciganos, deficientes, cegos
pedintes, negras grávidas com o filho no colo, portadores de HIV, velhos,
velhas?
Eu respondi a ele: “Como consegue dinheiro?” Ele,
com o rosto encharcado de lágrimas misturado à poeira, respondeu: “Pedindo”!.
Ele era só um pedinte indígena, uma nova classe social criada pela pobreza. E
meu útero de mãe rosnou, rosnou tanto que uma dor rouca, uma dor cavernosa me
saiu pela minhas entranhas, uma dor insuportável que esmigalhava minha alma,
minha essência indígena, meu berros internos! Indigente indígena: indigno isso!
Ai que dor, ser testemunha do renascimento desse
novo contingente. O SPI (Serviço de Proteção ao Índio), antes do golpe militar
em 1964, nunca se preocupou com o êxodo indígena para as cidades. Era melhor
fechar os olhos e ver os “indiozinhos” e suas famílias partirem de suas terras
do que investigar as causas da migração compulsória.
Aprendi com minha avó indígena, com Salvador Dali e
Paulo Freire a reconstruir uma imagem de
nós mesmos, desconstruir imposições e a reconstruir nosso discurso. Nós_ Povos
Indígenas_ precisamos nos salvar, antes mesmo que a demarcação das terras
cheguem no seu contexto mais amplo e antes desse almejado novo Estatuto do
Índio, porque as coisas como estão, podem deixar a população indígena muito
revoltada, pipocando casos como temos vistos nos últimos meses. Povos Indígenas
querem viver dentro do equilíbrio e dar seu testemunho de uma convivência
pacífica e não serem vistos na mídia empunhando bordunas ou armas. Eu clamo aos
governantes e empresários: “Reconheçam
os povos indígenas como os primeiros povos dessa terra e sem paternalismos, entreguem as terras que
são de seus ancestrais, numa medida de reconhecimento, de compensação e
restauração da dignidade indígena deste país.
Texto de Eliane Potiguara 17/06/2004 ( publicação autorizada desde que
cite a fonte e autoria) Publicada na lista Literatura Indígena.
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