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quinta-feira, 7 de abril de 2022

Texto: VI UM INDIOZINHO ESCORRENDO PELO BUEIRO



VI UM INDIOZINHO ESCORRENDO PELO BUEIRO

Vi um indiozinho escorrendo pelo bueiro. A metade de seu corpo superior debruçava-se sobre o meio-fio da rua e a outra parte inferior jazia cansada, escorrente pelo esgoto urbano. Imediatamente, lembrei-me do quadro de Salvador Dali, retratando um relógio de pulso desconstruído em sua forma original, mas reconstruído de forma que o relógio obedecesse às formas roliças do punho humano. Me vieram à cabeça diversas imagens derretidas deste pintor surrealista, desconstruidor da formalidade e convencionalidade sociais, políticas e humanas. Mas o indiozinho estava lá se derretendo e eu tive vontade de me derreter junto a ele pelo ralo planetar, mas não pude. Seria covardia de minha parte!
O menino de 10 anos,_ um indiozinho urbano, desse tipo que a intolerância e o paternalismo sociais ignoram e invisibilizam,_ compunha o triste  quadro da miséria humana.  E  se sua mãe pestanejar pelos direitos humanos, como alimentar-se pelo menos, o paternalismo analisará: “quem mandou sair de sua aldeia, quem são seus pais, seus avós, nós não lembramos dessas histórias?!! De vítima do processo social e racial passa a oportunista. Essa índia não pôde ficar na sua aldeia e esperar o “Paralelo 11”, versão 2004, ela fugiu antes!
O último censo do IBGE  registrou um aumento da população indígena, considerando os indígenas desaldeados e indiodescendente. Isso é um primeiro passo. Mas, enquanto isso o indiozinho continuava lá, sucumbindo às lágrimas. Seu corpo magro e sujo amoldava-se às formas do paralelepípedo. Sua cabeça reclinava sobre o chão imundo e seu pés mostravam os ossos aos “abutres”. Eu nunca vira uma cena como essa. Nessa noite eu não dormira. Nem na Índia eu vira cena tão agressiva à minha ética. Lá, choquei-me ao ver os Dalits (os intocáveis), que sobreviviam raquíticos, famintos, desconsiderados em estações de trem desativadas. Os Dalists eram mais felizes do que aquele indiozinho, sabe lá Deus, de que aldeia veio! E sua mãe ? Onde estaria? Onde estariam suas lendas, sua história de origem de vida? Onde estariam suas tradições, seus costumes e sua espiritualidade? Sua ancestralidade naquele momento descomprazia-se de sua sina. Os ossos daquela família, das mulheres daquele clã, jaziam fétidos no fundo do mar à espera da luz da foca ancestral ou jaziam à beira-rio esperando um milagre do pitiguary ancestral. Toda essa cena contrastava-se com a propaganda da arte indígena que nesse momento fazia sucesso em uma exposição citadina que corre o Brasil: “arte milenar indígena não morre!”... Mas morrem as pessoas indígenas pela falta de uma posição governamental que faça exercer os direitos indígenas nesse país. O indígena precisa sair das paredes, dos museus, das salas de exposição!
O Fórum Permanente para Povos Indígenas, para quem não sabe, foi criado a duras penas pela pressão do movimento indígena internacional. Isso há mais de vinte anos! A Assembléia das Primeiras Nações, o CISA ( Conselho Indígena de sudamérica) entre outras organizações indígenas foram os precursores pela implantação de uma política indígena autodeterminante, isto é, onde os próprios indígenas possam ser representados por eles mesmos. O governo pode considerar os povos indígenas brasileiros despreparados, divididos, infelizes, assessorados ora por um, ora por outros, o que queira. O indígena brasileiro deve sentar na cadeira destinada a ele dentro do Fórum Permanente para Povos Indígenas da ONU. Aquele espaço político foi construído por ele e para ele, não foi uma concessão da ONU. Rigoberta Menchu, Prêmio Nobel da Paz como um exemplo clássico, assim como milhares de indígenas invisíveis derramaram seu sangue e lágrimas por aquele Fórum. Que imagem continuamos construindo para nossos irmãos indígenas internacionais! Que imagem estamos construindo para nós, Povos Indígenas! A indígena Dona Marta, índia desaldeada, que queria ser deputada do PT, morreu em vão? Não construiu esse direito, não conseguiu, porque ninguém vota em candidatos indígenas. Mas lançou uma semente. Aproximam-se as eleições e esse quadro precisa mudar. Não há uma cadeira provisória no Congresso, a Constituição, o departamento jurídico A ou B não deixam. O Estatuto do Índio não deixa. Por acaso a Constituição deixa morrer à mingua os direitos indígenas ??? Claro que deixa, isso pode...e nós por pensarmos assim somos imediatistas, anti-profissionais, irresponsáveis, não sabemos esperar “o momento certo”, enfim... o “tempo histórico e político”. Quanto tempo temos que esperar?
O que deve ser feito é que esses homens de terno preto e cinza, com gravatas coloridas, que trabalham no Congresso Nacional, enfim.... desconsiderando Leis, Estatutos, Constituição devem reconhecer, não na lei, como li  na matéria  do Jornal do Serviço de Informação Indígena ( Servindi/ Jornal dos próprios indígenas) sobre o representante brasileiro na última reunião do Projeto de Declaração sobre os Direitos indígenas/Genebra/2003, que os direitos dos indígenas brasileiros “já estão assegurados”, no Brasil. Eu interpretei isso, apenas na teoria! No Brasil, nunca se diz o que já foi feito concretamente, se anuncia o que se vai fazer, é aí que as coisas se perdem.
O indígena brasileiro não pode ser mais idolatrado na sua cultura e arte , nas suas fotografias, na suas artes cinematográficas, nas suas expressões literárias e orais  ser literalmente ignorado na sua condição física, humana, social e política.
Enquanto isso  o indiozinho, cor da terra, que se esvaía no chão, moreno, faceiro, cabelos lisinhos, olhinhos de tigre_ roupas de mendigo_ continuava lá, na indignidade que lhe foi imposta pelos que dizem que temos uma Constituição e Leis e que não podemos desconsiderá-las. E eu , vendo aquele serzinho humano escorrendo pelo meio-fio, perguntei a ele: “ O que aconteceu”? Ele com uma mão esticada tentando catar os centavinhos caídos e outra mãozinha apertando uma nota fétida de um real, me respondeu: “ os meninos-de-rua  roubaram o meu dinheiro e me bateram. Ele não se considerava um menino-de-rua! Vejam só! Quem será menino-de-rua, meu Deus? Negros, favelados, delinqüentes, marginais, ciganos, deficientes, cegos pedintes, negras grávidas com o filho no colo, portadores de HIV, velhos, velhas?
Eu respondi a ele: “Como consegue dinheiro?” Ele, com o rosto encharcado de lágrimas misturado à poeira, respondeu: “Pedindo”!. Ele era só um pedinte indígena, uma nova classe social criada pela pobreza. E meu útero de mãe rosnou, rosnou tanto que uma dor rouca, uma dor cavernosa me saiu pela minhas entranhas, uma dor insuportável que esmigalhava minha alma, minha essência indígena, meu berros internos! Indigente indígena: indigno isso!
Ai que dor, ser testemunha do renascimento desse novo contingente. O SPI (Serviço de Proteção ao Índio), antes do golpe militar em 1964, nunca se preocupou com o êxodo indígena para as cidades. Era melhor fechar os olhos e ver os “indiozinhos” e suas famílias partirem de suas terras do que investigar as causas da migração compulsória.
Aprendi com minha avó indígena, com Salvador Dali e Paulo Freire a reconstruir uma imagem  de nós mesmos, desconstruir imposições e a reconstruir nosso discurso. Nós_ Povos Indígenas_ precisamos nos salvar, antes mesmo que a demarcação das terras cheguem no seu contexto mais amplo e antes desse almejado novo Estatuto do Índio, porque as coisas como estão, podem deixar a população indígena muito revoltada, pipocando casos como temos vistos nos últimos meses. Povos Indígenas querem viver dentro do equilíbrio e dar seu testemunho de uma convivência pacífica e não serem vistos na mídia empunhando bordunas ou armas. Eu clamo aos governantes e empresários:  “Reconheçam os povos indígenas como os primeiros povos dessa terra  e sem paternalismos, entreguem as terras que são de seus ancestrais, numa medida de reconhecimento, de compensação e restauração da dignidade indígena deste país.
Texto de  Eliane Potiguara   17/06/2004 ( publicação autorizada desde que cite a fonte e autoria) Publicada na lista Literatura Indígena.

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